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Órfão de
pai aos 2 anos e tendo a mãe alcoólatra e um dos sete irmãos traficante, o
médico de Brasília Cícero Pereira Batista, de 33 anos,
conseguiu vencer as adversidades estudando a partir de livros que retirava do
lixo. Ainda criança, ele saía do Chaparral, onde a família mora até hoje, e
percorria 20 quilômetros todos os dias pelas ruas de Taguatinga em busca de comida.
Junto com
as sobras de alimentos descartados no lixo, Batista recolhia todos os livros
que encontrava e vinis de Beethoven e Bach, atualmente suas inspirações. Ele se
formou há menos de três meses e agora sonha em abrir um consultório.
"Meu
pai era quem fazia o sustento de casa, e morreu de uma úlcera que provocou
hemorragia interna. Minha mãe ficou louca e bebia muito. Ela começou a lavar
roupa para fora e a catar latinha no meio da rua, mas não era suficiente. A gente
sempre passou fome, tudo o que ela fazia não dava jeito. E meu irmão levava
traficante para a nossa casa. Aliados a nossa miséria, tínhamos o alcoolismo e
as drogas dentro de casa. Eu saía para buscar comida – a gente não tinha mesmo,
não tinha nem o que vestir – e tinha dias que não voltava. Eu não precisava,
mas tinha dias que dormia na rua para não ter que aguentar as brigas",
lembra.
Na
procura por alimento, o garoto encontrou coisas que lhe despertavam uma atenção
ainda maior. As páginas cheias de letras e figuras e os discos o deixavam
fascinado, ainda que misturados ao chorume que havia no lixo. Cícero sempre
reservava um pedaço da caixa que carregava para os "tesouros". Com a
ajuda de vizinhos, ouvia os vinis e pôde aprender a sonoridade de cada letra.
"Fui
juntando as sílabas e compreendendo as sentenças e palavras. Quando entrei na
escola para fazer o primário, já sabia ler, escrever e fazer as operações
fundamentais. Entrei tarde, acho que eu tinha 10 anos, eu que pedi para a minha
irmã me matricular", diz.
"Eu trazia a caixa na cabeça debaixo de
chuva e sol. Muitas vezes, escorria secreções dos alimentos e das carnes em
mim. Eu parava, descansava um pouco e então seguia para casa."
Entre as obras que encontrou descartadas estavam "O sermão de Santo Antônio aos peixes", do Padre Antônio Vieira, e "A metamorfose", de Franz Kafka, além de "Magnificat" e a cantata "BMV 10" de Bach. O menino também achou livros de biologia, filosofia, teologia, direito e história e passou a colecioná-los em casa. Tudo era lido por ele.
Entre as obras que encontrou descartadas estavam "O sermão de Santo Antônio aos peixes", do Padre Antônio Vieira, e "A metamorfose", de Franz Kafka, além de "Magnificat" e a cantata "BMV 10" de Bach. O menino também achou livros de biologia, filosofia, teologia, direito e história e passou a colecioná-los em casa. Tudo era lido por ele.
"Amo
Bach e Mozart. Junto com os livros, eles me salvaram. Eles falavam mais alto
que a fome e me transportavam para outros mundos", conta o médico.
"Depois descobri Vivaldi e Strauss e comecei a amar música clássica. Às
vezes eu pensava, vendo a vida dos compositores, que se Bethoven era surdo e
fez o que fez, eu não poderia tentar? Eu, mesmo com fome, mesmo com
adversidades, pobre, negro, não sendo homem bonito, conseguiria chegar lá. E é
isso que a gente tem que pensar, que todo esforço é poder."
A
inspiração o levou a fazer um teste para o curso profissionalizante de técnico
de enfermagem, que valia como ensino médio. A ideia veio dos cuidados que ele
tinha com a saúde da família e do gosto por dissecar cachorros mortos ou
observá-los ampliados com a ajuda de uma lente achada em máquina de fotografia
Polaroid, também tirada do lixo. O jovem foi aprovado em segundo lugar na
seleção.
Após
concluir os estudos, Cícero decidiu então prestar concurso e passou a trabalhar
na Secretaria de Saúde. O pouco dinheiro já era um alívio diante das
dificuldades vividas pela família, mas o rapaz queria mais. Três anos depois,
fez vestibular para medicina em uma faculdade particular no interior de Minas
Gerais, passou e, sem pensar duas vezes, decidiu enfrentar o novo desafio.
Como não
podia abrir mão do emprego, o jovem se dividia entre os plantões aos fins de
semana no Distrito Federal e as aulas na outra cidade. O salário seguia
contado. "Acabei passando fome, cheguei a desmaiar em sala. Por vezes,
precisei dormir na rodoviária para economizar", lembra.
Um ano e
meio depois, o rapaz conseguiu 100% de desconto em uma instituição de Paracatu
(MG) por causa do bom desempenho no Enem. A faculdade se recusou a aproveitar
os três semestres feitos em Araguari, e Cícero precisou recomeçar os estudos.
Seis meses depois, já em 2008, ele repetiu o resultado e conquistou uma bolsa
integral em Brasília.
"Quando
vim, eles aproveitaram algumas matérias, mas também não quiseram me progredir
de período, portanto eu voltei à estaca zero de novo. Mas eu nunca desisti,
continuei trabalhando e fazendo o meu curso. Eu saía do plantão noturno para a
faculdade. Era muita dificuldade, tinha dias que eu chegava molhado e sujo
porque tinha chovido, eu pegava dois ônibus, e no trabalho eu era obrigado a
usar roupa branca", conta.
Sem os
custos com passagens de viagens interestaduais e a mensalidade, Cícero pôde se
dedicar melhor às paixões. Ele virou frequentador assíduo de sebos e passou a
comprar mais livros e vinis. Assim, reforçou a paixão pelos autores e músicos
que conheceu por meio do lixo e pôde estender as noções que já tinha na área.
As primeiras compras para si foram livros da faculdade de medicina e CDs de
música clássica.
"Nunca
foi fácil, meu dinheiro nunca foi suficiente, mas eu não cedi. Eu me esforcei,
eu não me rendi às adversidades financeiras, às adversidades das drogas. Eu
dormi no meio da rua fugindo das drogas que tinha dentro de casa muitas vezes.
Eu não era morador de rua, eu tinha onde ficar, mas eu dormia fora para evitar
a situação. Nunca usei droga, nunca botei um cigarro de maconha ou qualquer
cigarro na boca, nunca bebi", explica.
Formado
em junho deste ano, Cícero atualmente trabalha como médico clínico e
generalista em dois hospitais de Águas Lindas e Valparaíso, municípios no
Entorno do DF. Ele afirma reconhecer em muitos pacientes um quadro semelhante
ao que viveu. "São iguais a mim. São pessoas que muitas vezes chegam com
fome, chegam doentes porque não tiveram o que comer"
Para ele,
a experiência na infância acaba o ajudando a cumprir o que considera uma
missão. "O médico muitas vezes tem essa autonomia de aliviar o sofrimento.
Eu me formei em medicina para aliviar o sofrimento de pessoas que estavam como
eu."
Futuro
Além de continuar prestando atendimento a quem vive em situação de
vulnerabilidade social, o médico planeja a abertura de um consultório
particular na capital do país e acumula os sonhos de fazer residência em
psiquiatria e especialização em medicina aeroespacial fora do Brasil.
"Gosto
de entender os conflitos humanos, as fugas, os processos que levam a pessoa à
dependência química, à realidade de alguns familiares meus, como o alcoolismo
da minha mãe e o uso de drogas do meu irmão. Como estas pessoas se entregaram
ao vício? Como tratá-las? Como curá-las? Eu também sempre gostei das coisas do
espaço, das estrelas, pois de certa forma olhar e compreender o céu me
aliviavam o sofrimento e a fome e me davam força para seguir em frente",
declarou.
O
profissional, que voltou a morar com a mãe no Chaparral, afirma ainda querer
comprar um apartamento para poder morar sozinho, além de promover melhorias na
casa da família. "Está em pedaços e mofada, e minha mãe por isso tem
pneumonias de repetição. Se eu não conseguir reformar a casa da minha mãe,
[quero] tentar comprar uma para ela."
"Minha
mãe está velhinha e precisa de um mínimo de conforto e paz. Ela cuidou de
muitos filhos, já está na hora de eu cuidar dela agora que eu me formei médico.
Não quero que ela passe fome de novo, não quero que ela viva em uma casa com
goteiras e mofo. Esses últimos ideais são meus sonhos de realização imediata e
necessária", afirmou.
Foto: Arquivo pessoal |
Fonte: G1