Imagem: Betto Jr/Correio |
O motorista é negro, tem cabelo black e dirige em um bairro pobre. Uma viatura encosta ao lado. O jovem treme. O policial abaixa o vidro e solta: “Pô, cara. Agora lembrei da minha adolescência. Eu tinha um black desse aí. Era fã de James Brown e The Jackson 5”. Contado em meio a boas risadas, o caso foi vivido pelo estudante Matheus Ferreira, 18 anos, um dos 3 mil (segundo organizadores) a participar da Marcha do Empoderamento Crespo, no sábado (7), no Centro.
Apesar de mostrar que os tempos são outros, a história de Matheus ainda é exceção. Exatamente por isso tanta gente marchou em defesa de uma estética que ainda gera preconceito. “Por isso, bom que se diga, estética para a gente é política. O cabelo é um símbolo, um pretexto para lutar contra o racismo”, disse Naira Gomes, 27, antropóloga, uma das organizadoras da marcha e dona de um lindo cabelo black.
Não só cabelo black power, mas também rastas, afros, pixains, lisos e até carecas desfilaram entre o Campo Grande e a Castro Alves. A Marcha teve apoio de diversos grupos ligados ao movimento negro e secretarias de promoção da igualdade. Apesar de aberta a quem quisesse, o evento teve protagonismo feminino. A proposta de realizá-lo surgiu da cabeça de três mulheres que usaram as redes sociais para mobilizar a galera de cabelo crespo.
Lorena Lacerda, Andrea Souza e Naiara Gouveia sequer se conheciam pessoalmente, mas lançaram a ideia no Grupo de Crespas e Cacheadas no Facebook. “A mulher sofre de dois lados. O racismo e o machismo. Por isso, usamos o conceito de empoderamento. A partir da estética, a mulher se empodera e empodera a comunidade”, acredita Andréa, 33, professora de História.
No lindo mar negro que tomou as ruas do Centro encontrava-se de tudo. Os noruegueses brancos Kietil, Viktor e Oystein. “Somos diferentes, mas somos iguais”, explicou Kietil. A estudante de cabelo escorrido Lara Silva, 21. “Essa é uma questão da sociedade toda”, defendeu. E o completamente careca Vander Chaves, 33. “O meu black tá aqui, ó”, disse, batendo no peito.
A Marcha do Empoderamento Crespo ocorre 41 anos depois de uma marcha histórica que se deu em pleno Carnaval de Salvador, em 1974. O primeiro desfile do bloco Ilê Ayiê foi uma das marcas do Movimento Black Power na Bahia. O Ilê surge justamente dessa estética, que chegava ao Brasil a partir de uma revolução musical – além de política e social – que se dava nos Estados Unidos.
A Marcha de ontem não deixa de ser uma reafirmação do black power. Por isso, Naira Gomes posava com o braço direito levantado e o punho fechado. “Essa é a continuidade de um legado. Nossa luta não cessa nunca. Volta e meia, precisamos mostrar nossa cara”, disse Naira. É o que faz Matheus, o jovem que surpreendeu o policial, quando carrega no pescoço dois ouriçadores de cabelo, símbolo da estética black. “Entrei de cabeça nessa onda. Literalmente”.
Fonte: iBahia