Foto: Ilustrativa | De Frente com os Livros |
Por Sergio Marcone Santos
No artigo anterior sugeri
alguns motivos alegados por nós para não lermos livros. Falta de tempo e
dinheiro foram alguns dos argumentos refutados nele.
Pois bem. Penso, sem exagero
algum, que uma bula de remédio hoje diz mais aos seres humanos do que a
literatura. Aquele processo de rever os movimentos (aqui, num sentido pendular)
sociais e históricos do passado, de ver uma Alta Cultura respeitando-a e
fazendo dela um paradigma não são mais apreciados pelo homem contemporâneo. Sim, para ele, ele
se basta e nunca houve passado de glória nem épocas de ouro na humanidade. O
melhor é e está no agora. A História, para esse homem, começou há pouco. O
retrovisor não existe. Enfim, tudo se resume a uma palavra: disruspção
(ruptura, rompimento).
Some-se a isto, o fato de
cada indivíduo compor sua história a partir das redes sociais. Um passeio por
uma dessas redes equivale a “ler” contos, novelas, romances etc. de vários
gêneros tal a quantidade de temas, cada um gerando os mais diversos
sentimentos: passamos fácil da bipolaridade para a poli-polaridade com um simples rolar da tela. A própria
transmutação da vida real para a virtual já corresponde à ficcionalização do ser.
Cada um de nós representaria um personagem dentro de um roteiro enorme e sem
fim, muito mais do que as hoje simples “Mil e uma noites”. Ora, se minha vida
está contida numa história de ficção, logo hei de prescindir das Donas Flores e
Diadorins espalhadas por aí. Eu não só narro minha vida (selfies, emojis, onde
estou, para onde vou, como está meu humor etc), como dou destinos afins a ela,
incorporando plot twists (luto, fotos
de flagras, “em um relacionamento sério com...” etc.) ao meu bel prazer e ao da
minha audiência. Likes e compartilhamentos
são muito bem vindos. Interessante lembrar que a maioria dos filmes que
concorreram ao Oscar nos últimos anos foi “baseado em fatos reais”. Vamos ao
cinema fazendo um exercício dialético com o que nos transformamos nas redes
sociais. Aqui somos avatares. Lá, no cinema, gozamos com simulacros da vida
real oriundos da própria “vida real” real. Nunca “A rosa púrpura do cairo” (de
Woody Allen), no qual o galã sai da tela e namora a moça ingênua, foi tão
atual.
Outro fator que faz sucumbir
o amor pelos livros é que todos hoje têm voz, têm opinião, em suma: todos
entendem de tudo. Mais uma vez, aqui, prescinde-se das obras que versam de
física quântica, de motores de avião e da cópula do aedes aegypty. Com a “ascenção do medíocre” qualquer assunto pode
ser tratado, debatido e, muitas vezes, gerado discórdia a partir das opiniões
“sem contexto e sem retrovisor”, ou seja, sem uma dialética necessária ao bem
pensar. Surgem aí enxurradas de achismos, de um galo que se ouviu cantar não se
sabe aonde, mas que possui um peso igual à opinião de quem tenha se debruçado
uma vida inteira sobre determinado assunto. E se a prerrogativa de ser um
entendido de verdade for invocada, não se espante se surgir uma acusação de
“preconceituoso”, de que “não respeita a opinião de minorias” e, por fim, o que
equivale ao novo xingamento da mãe: “reaça!!”.
Como diria o poeta e músico
Duda Brandão, “de nada vai adiantar o seu Carlos Drummond” quando a
circunstância requerer um saber ou até uma simples citação, pois todas as
opiniões hoje possuem um mesmo valor. Igualdade da mediocridade, finalmente,
para todos.
Jose Ortega & Gasset no
seminal “A rebelião das massas” nos diz que “em política, em arte, nos usos
sociais, em outras ciências, [o
especialista] tomará posições de primitivo, de ignorantíssimo, mas as tomará
com energia e suficiência” (1930, 2002, p. 146, grifo meu). Esse
“especialista” é justamente aquele que, por exemplo, é designer, mas que se
sente mui à vontade em ir às profundezas das análises políticas ou do Brexit
etc., brigando, combatendo, (in)transigindo, sem sentir a mínima necessidade de
recorrer ao que já fora ou é escrito sobre esses temas. “Não preciso ler
jornais, mentir sozinho eu sou capaz” dirá, esquecendo-se de que o niilismo
proposto por Raul Seixas é para um Raul Seixas, não para meros mortais.
Ainda leio livros. As bulas
só quando preciso.
Sergio Marcone Santos é formado em Letras Vernáculas pela UEFS e pós graduando em Comunicação em Mídias Digitais pela Unifacs |
*As opiniões emitidas em artigos assinados no site Diário da Notícia são de inteira e única responsabilidade dos seus autores.