Foto: Matheus Buranelli |
“Até no lixão nasce flor”, disse o rapper Mano Brow na música Vida Loka. A frase, na linguagem dos presídios, simboliza esperança. Nas ruas, significa que coisas boas podem surgir dos lugares mais adversos. A expressão sintetiza bem a passagem de Priscila Regina da Costa da Silva, 34 anos, no Conjunto Penal Feminino de Salvador, na Bahia. Presa desde 2016, a detenta encontrou nos livros a possibilidade de “renascer”, como costuma dizer. As constantes leituras lhe renderam uma vaga no curso de Biblioteconomia da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
“Desde que voltei para a cadeia, eu pensei que ia aproveitar meu tempo. Então, comecei a trabalhar na biblioteca e, por isso, passei a ler. Ano passado, li 85 livros. Leio de tudo, até Vade Mecum, porque também pensava em cursar Direito um dia. Eu achava que ia me sair bem no vestibular, mas não esperava passar na federal. Difícil é saber que as aulas já começaram e que eu não fui um dia”, lamenta.
Priscila está em sua terceira passagem pela cadeia, já tendo sido presa por tráfico e estelionato.
E foi presa novamente por sequestro, crime do qual alega ser inocente, durante prisão domiciliar. Ela tem 30 anos de pena a cumprir – pouco menos do que o que tem de vida.
“Queria estudar na Ufba para aprender sobre um curso que já é na área que trabalho aqui. Não estou pedindo para sair. Quero cumprir minha pena e estudar. Acho que vai ser bom pra mim e para estimular as outras presas também. Eu já indico bastante livros para elas”, conta Priscila. Além da vontade de aprender e ajudar as colegas de prisão, para Priscila, a oportunidade representa também uma chance de dar orgulho ao pai.
“Acho que, nos últimos anos, essa foi a única vez que eu consegui dar orgulho a ele.
Quando passei, liguei logo para casa para avisar. Naquele momento, eu senti meu pai emocionado. Sou a primeira da família a passar na federal, sabia?”, conta.
Os casos de presidiários que entram em universidades devem ser decididos um a um. “A decisão é de competência do juiz criminal designado para a condução do processo, de acordo com as normas do Código Penal e outros normativos afins”, explica o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Para a magistrada responsável pelo caso de Priscila, a presa não pode estudar porque ela cumpre pena em regime fechado.
Na última semana, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) entrou com um novo recurso, baseado no direito à educação e também alegando que a universidade pode ser parte do processo de ressocialização da detenta.
“Entramos com um agravo e não vamos desistir. Priscila é uma mulher presa que passou na Ufba e isso nunca aconteceu antes. Cadê o fundamento da ressocialização? E o direito à educação? Ela não pode perder essa oportunidade”, argumenta a defensora Andréa Tourinho. A reportagem entrou em contato com o TJ-BA para saber informações sobre o novo recurso e como resposta recebeu a decisão do caso.
Para Andréa, “a Justiça precisa ter um olhar de sororidade para mulher. O sistema prisional, que é machista como a sociedade, não enxerga a mulher em uma posição ‘melhor’. Isso fica perceptível até nas atividades que as presas e presos desenvolvem na cadeia”.
De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária da Bahia (Seap-BA), quatro presos estudam em universidades na Bahia atualmente. Dois deles em Salvador e dois no interior do estado. A assessoria de comunicação da Seap não soube informar o regime da pena que os presos cumprem.
Quando Priscila diz que se esforçou para estudar, ela não exagera. Quem diz isso é a ex-diretora do Conjunto Penal Feminino, Luz Marina da Silva. “Observei que, nos últimos seis meses, ela estava bem dedicada aos aulões do Enem que aconteciam na cadeia. Aliás, não era foi só Priscila, as outras presas também estavam empolgadas”, diz Luz.
Priscila concluiu o ensino médio dentro da cadeia.
E para estudar ali, adaptou sua rotina. Acordava mais cedo alguns dias, especialmente às terças e quintas, quando levantava 5h30 para adiantar as atividades e ir para aulas de professores voluntários da Ufba.
Quando os professores iam embora, ela revisava os assuntos das matérias. Nos dias que não tinha aula, Priscila costumava passar a maior parte do tempo na biblioteca “abrindo a mente”, como descreve. Não à toa, o nome do espaço se chama “Mentes Livres”. “No ano passado eu descobri que gostava até de biologia e história”, brinca.
A leitura deu retorno na hora da redação do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL). Priscila atingiu a nota de 740. E, apesar do resultado, ela ainda reclama. “Eu li muito sobre política, mas não caiu nada.
Fiquei retada. Queria tirar mais de 800”, conta.
Na cadeia de Salvador, o Enem PPL foi aplicado nos dias 11 e 12 de dezembro de 2018. Pelo menos 400 presos fizeram a prova.
Na época da inscrição no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), Priscila pediu à direção do presídio para que alguém olhasse suas notas. A diretora viu que a presa tinha tido um rendimento satisfatório e, em seguida, tentou inscreve-lá. Quem finalizou o processo foi uma agente penitenciária.
A agente, que preferiu não divulgar seu nome, inscreveu Priscila da própria casa. Ela, inclusive, passou mais de três dias acompanhando a nota da presa de madrugada, quando estava de folga. “Todos os dias ela vinha me perguntar se estava ‘dentro’ da disputa pelas vagas ainda. No dia que cheguei com a notícia no presídio, foi um chororô. Ali eu vi , de fato, o que é ressocializar”, relata a agente penitenciária.
Priscila foi matriculada na Ufba no dia 13 de fevereiro e, desde então, nunca mais pisou na Universidade.
O primeiro crime que Priscila praticou foi contra alguém que, segundo ela, cometeu uns dos mais graves crimes contra uma mulher: estupro. Dos 9 aos 12 anos, ela conta ter sido abusada pelo patrão de seu pai.
Filha de pais adotivos, ela morou ao lado da casa dos chefes de seu pai durante toda a infância. Os abusos teriam iniciado “quando começou a ficar mocinha”.
Ela ainda consegue se lembrar do primeiro dia em que foi estuprada e das ameaçadas que recebia em seguida.
“Ele me abusava e me perseguia. Era um homem muito mais velho e dizia que ia demitir meu pai, que sempre foi meu chamego, se eu contasse”, lembra. Mas um dia uma cozinheira da casa viu o abuso e a levou para o Conselho Tutelar. “Lá eu contei tudo, mas minha mãe adotiva, que não gostava de mim, não acreditou e me deu uma surra. Ela não seguiu com o processo e ele sequer foi preso”, lamenta.
Depois de denunciar o abusador, Priscila foi morar em uma casa afastada do pai, que continuou no emprego. Como filha, perdoou a mãe, afinal, entendia que a família precisava da renda mensal. No entanto, como mulher, jamais entendeu como sua mãe podia “se virar contra ela”.
A revolta era constante em Priscila depois dos abusos.
Diante da impunidade, resolveu “dar um jeito” no patrão de seu pai. Começou a namorar com um traficante e disse que queria matar.
“Eduardo me perguntou o que eu queria fazer e eu disse que queria matar”, conta. Juntos, os dois armaram um plano de simular um assalto na casa, que acabou não dando certo e, com isso, Priscila foi parar na cadeia.
A partir da primeira prisão, a vida da detenta foi uma “sequência de erros”. Aos 13, ela engravidou do filho mais velho, morto pela polícia no ano passado. Passou a frequentar festas com o ex-parceiro e a conhecer mais o mundo no crime.
Nos últimos anos em que esteve fora da cadeia, ela passou pelos estados de Sergipe, Bahia e Pernambuco. Foi presa três vezes na Bahia e “assume” os dois crimes, de tráfico e estelionato.
Estava em prisão domiciliar quando foi acusada de participar de um sequestro de um comerciante, em Campo Formoso, no interior da Bahia. Ela afirma que não teve nenhum envolvimento com o sequestro e que foi usada como “isca”.
Fonte: Voz da Bahia