Cidades com maior proporção de mulheres negras da Bahia ficam no Recôncavo

Foto: Divulgação/Projeto Nossa Cor
Em janeiro deste ano, Denise Bento do Nascimento largou o trabalho como balconista em uma farmácia na cidade de Terra Nova, no Recôncavo Baiano, e decidiu iniciar um novo projeto: ajudar meninas e mulheres da cidade a assumirem a própria negritude. Com uma população estimada de 13 mil pessoas, Terra Nova tinha em 2010 quase 48% da população composta por mulheres negras. O município, de acordo com o IBGE, é o que tem a maior proporção de mulheres pardas e pretas de toda a Bahia — onde 80% das mulheres são negras.

A prefeitura da cidade, entretanto, não tem nenhum projeto voltado ao apoio dessas mulheres, que têm os piores índices sociais do país. Foi por isso que Denise, de 36 anos, nascida na comunidade do Alto, fundou o “Nossa Cor”. “Minha mãe trabalha com doações de sopa, de roupas, e desde meus 15 anos a gente ajuda ela. Aí eu fui vendo que a necessidade não é só de alimentação, as meninas precisavam de oportunidade de mudança. Vi a necessidade de fazer um projeto para abraçar… mostrar que elas podem se empoderar”, conta a microempreendedora.

Segundo estatísticas, as 25 meninas e mulheres negras entre 10 e 63 anos que hoje fazem parte do grupo Nossa Cor têm maiores chances de viver em situação de trabalho precária, integrar a parcela pobre da sociedade, passar fome, não encontrar um emprego, não completar a escolarização e até de serem vítimas de feminicídio. Isso comparadas a mulheres e homens brancos, além de homens negros. “A trajetória é grande, mas eu sou insistente”, diz Denise.

INSISTÊNCIA

No dia 10 de janeiro, Denise abriu uma loja de roupas e acessórios afro. Um mês depois, tinha as duas primeiras participantes do projeto. Inspirado no Didá, a banda musical de percussão exclusivamente feminina de Salvador, o Nossa Cor oferece aulas de percussão e dança. “Chamo as meninas para tirar fotos na lojinha, aí eu começo a plantar a sementinha de chamar para poder participar das atividades do grupo, das palestras e apresentações”, conta a líder comunitária.

O próximo passo, segundo Denise, é incluir cursos profissionalizantes, mas para isso ainda precisa de ajuda. O projeto é sustentado com o recurso das vendas de roupas e acessórios, que tem como modelos as meninas do grupo Nossa Cor.

“É muita coisa que eu sonho, não só para elas, mas também para as mulheres, porque a gente está exposta a tudo e não tem apoio de nada”, afirma a líder comunitária. “Eu comecei a me entender como mulher negra aos 18 anos, porque eu não me conhecia e não me valorizava como uma mulher negra. A gente não é nem educada para se conhecer”, completa.

Em agosto, Denise organizou uma viagem para Salvador com as mulheres do Nossa Cor. “Foi um momento maravilhoso. A gente está conhecendo um pouco melhor a nossa cultura, resgatando nossas raízes. Eu tô começando agora, sou nova. Tô começando a desbravar tudo”, diz.

Nossa história: mulheres fumageiras

O Sindicato da Indústria de São Gonçalo dos Campos guarda uma ata de 1960. Nela, Dona Maria Adélia questiona por que algumas de suas companheiras, que se sentavam na escolha de fumo junto aos homens e davam a mesma produção, recebiam 70 cruzeiros, enquanto os homens ganhavam 120. Nessa época, mulheres negras eram responsáveis por boa parte do trabalho na produção do fumo, que deu identidade à região. A resposta recebida, entretanto, foi que “era essa quantia para mulher”.

A historiadora são-gonçalense Rosana Falcão Lessa escreveu um livro sobre o protagonismo das mulheres fumageiras na cidade. “Apesar de todas as estruturas tentarem marginalizá-las, elas estavam o tempo todo resistindo. Iam se reconstruindo, forjando seu sentido de dignidade, de família e humanidade”, conta a doutora em História.

O primeiro Censo, feito em 1871 pelo IBGE, aponta que o maior número de mulheres e população negra estava em São Gonçalo, por ser o campo de plantação de fumo. “Isso dava um afastamento da vinculação de subalternidade que a lógica escravista impunha. Elas [mulheres fumageiras] podiam gerir seu tempo longe do que o estado esperava. Por isso você vai ver uma grande quantidade de mulheres negras [na cidade]”, explica Lessa.

No último Censo, de 2010, a cidade era a segunda da Bahia com maior proporção de mulheres negras. “Uns amigos [do Rio de Janeiro] que sempre vêm me visitar em São Gonçalo, nas festas da cidade, falam que estão em Wakanda [reino fictício do filme Pantera Negra]”, diz Rosana.

Segundo Rosana, em 1960, as mulheres fumageiras sabiam das injustiças que sofriam e procuravam formas de resistir e compensar as perdas pelas quais passavam. Apesar de totalmente reprimidas, as operárias que andavam pelas ruas de São Gonçalo com trouxas de fumo na cabeça reivindicavam seus lugares sociais. “Essa relação de passado e presente você vê de forma bem latente. Na minha tese, encontrei um documento em que as mulheres negras diziam que o trabalho que elas estavam exercendo era para elas consolidarem algo no futuro. Elas realizavam visualizando um futuro maior de possibilidade para os seus mais novos”, diz a historiadora.

Trabalho de formiguinha

“Teve a Conferência de Saúde e o secretário não queria ler algumas questões em relação à saúde da população negra. Aí eu pensei: “Não faz sentido, nós somos a maioria””, diz Dandara*, moradora de Governador Mangabeira. Após anos na militância negra da região, a mulher ainda se surpreende com a dificuldade de abordar temas em relação a raça e gênero na terceira cidade com maior proporção de mulheres negras da Bahia.

No Recôncavo Baiano, Governador Mangabeira tinha 47,4% da população composta por mulheres negras em 2010. A atual gestão da cidade de 20 mil habitantes, porém, não tem nenhuma ação contínua voltada para as mulheres negras. A Secretaria Municipal de Políticas Especiais (Sempe), implantada no último ano, alega ser relativamente nova e ainda estar atualizando os dados para pensar em ações específicas para a demanda.

Em julho do último ano, a Sempe realizou a exposição “Mulher negra e a sua relação com a sociedade”, em que espalhou fotos de mulheres negras de Governador Mangabeira pela cidade durante dois dias. “No primeiro dia, as fotos de mulheres negras mangabeirenses ficaram expostas na praça de Quixabeira, com o intuito de que todos que passassem pelo local tivessem o prazer de apreciar e no segundo dia, a exposição foi apreciada na Praça Castro Alves, aqui na sede”, diz publicação da pasta na época.

Em outro momento, a cidade também ofereceu curso de tranças africanas para meninas. Mas Dandara* considera pouco. “É fundamental e importante elas se perceberem como mulheres negras e perceberem quais são nossas necessidades”, afirma. “Tento fazer um trabalho de formiguinha”. (Metro 1)

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